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Publicado em 06.06.07
Por Rejane Maria Dias de Castro Bins,
desembargadora do TJRS.
Se me perguntasse apenas se o aborto provocado é um desejo do povo brasileiro, a resposta seria simples, fácil - e negativa. Pesquisa realizada pelo Ibope [1] em fevereiro de 2005, em cento e quarenta e três municípios, objeto de reportagem no programa Fantástico, da Rede Globo, apontou um percentual de 97% de respostas contrárias a essa prática, sendo somente 2% de mulheres a ela favoráveis. Mais recentemente, outra pesquisa, feita pelo Ministério da Saúde nos dias 18 e 19 de julho de 2005, em cento e trinta e um municípios, apurou-se que apenas 11% dos brasileiros apóiam a descriminalização do aborto [2]. Não se ousa (e imaginam-se quais as razões) realizar um plebiscito a respeito. Poderia ocorrer sem custos adicionais, nas eleições que se avizinham.
Sob muitos outros ângulos seria possível enfocar o tema do aborto provocado. Do ponto de vista histórico, analisar-se-ia em que povos foi praticado desde que se tem notícia, como era encarado em cada época, se cresceu ou diminuiu sua prática. Do ponto de vista sociológico, estudo que diz respeito às circunstâncias sociais e econômicas envolvidas, verificar-se-ia qual a sua incidência no momento atual e o que conduz a ela. Do ponto de vista psicológico, examinar-se-iam as motivações e as repercussões na mulher. Do ponto de vista da bioética, tratar-se-ia de averiguar se o embrião humano é vida humana desde o momento da fecundação e se seria eticamente aceitável tal aborto. Mas minha intenção é fazer uma abordagem jurídica do tema.
Isto não dispensa uma rápida passagem pela questão da natureza do recém-concebido. A ciência genética, hoje, é concludente no sentido de que, tendo o espermatozóide penetrado no óvulo, os dois gametas dos pais formam uma nova entidade biológica, o zigoto. Não há uma soma de dois sistemas, pois a estrutura que coordena o zigoto é o novo genoma, onde se contém toda a “‘informação’ essencial e permanente para a realização gradual e autônoma deste projeto”, segundo A. Serra [3]. E prossegue: “Não é ele ‘executado” por órgãos fisiológicos maternos”. Entram em ação, desde o momento da fecundação, os sistemas de controle do zigoto, mesmo antes da implantação (propriedade biológica da coordenação). O novo ciclo vital iniciado com a fertilização segue sem interrupção (princípio da continuidade). O mesmo indivíduo vai adquirindo sua forma definitiva; mantém a própria individualidade e identidade (propriedade da gradação). A dependência extrínseca do ambiente materno, análoga à do recém-nascido ou à do adulto (todos dependemos do ambiente vital que nos circunda), ligada ao fornecimento de alimento, à oxigenação ou à expulsão de elementos tóxicos, não contradiz a autonomia, pois que o impulso e a direção do desenvolvimento não dependem de órgãos maternos. Servindo-me de comparação de Elio Sgreccia [4] com uma construção, o zigoto é o projetista, o empresário, o executor e o construtor, construindo-se a si mesmo.
Em idêntico sentido, de que o ser humano existe desde a concepção, têm-se manifestado médicos, geneticistas e cientistas. Remeto a alguns autores aqueles que desejarem aprofundar conhecimentos técnicos: Alice Teixeira Ferreira, médica e professora livre docente da Universidade Federal de São Paulo [5], Diego León Rábago [6], Keith L. Moore, citado por Rábago, Eliane S. Azevedo, geneticista [7], Botella Lluziá, biólogo, citado por Alexandre de Moraes [8].
Feita esta rápida digressão pela ciência, impõe-se avançar pelo campo da legislação positiva, foco desta meditação.
No ápice, todos sabemos, encontra-se a Constituição Federal, lei fundamental que rege a vida da sociedade brasileira, objeto de Assembléia Constituinte promulgada em 05.10.1988.
Em seu artigo 5º, caput, dispõe:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...].
Não há cidadania, liberdade ou democracia sem que se assegure o direito à vida, pressuposto de todo e qualquer outro direito.
Alexandre de Moraes [9] bem esclarece:
O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência. O início da mais preciosa garantia individual deverá ser dado pelo biólogo, cabendo ao jurista, tão-somente, dar-lhe enquadramento legal, pois do ponto de vista biológico a vida de inicial com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, resultando um ovo ou zigoto. [...] A Constituição, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive uterina.
O direito à vida, pois, “É o direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável. [...] Porque se assegura o direito à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital” [10].
Nos artigos 124 a 127 do Código Penal está previsto o crime de aborto, com penas de um a dez anos de prisão, justamente no Título I da Parte Especial, que trata dos crimes contra a pessoa, e no Capítulo I, que versa os crimes contra a vida [11]. Isto indica que a sociedade democrática e o legislador, seu porta-voz, tinham o feto como pessoa já em 1940. Na Carta atual, no inc. XXXVIII do art. 5º, o legislador constituinte atribuiu a competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida ao Tribunal do Júri, entre eles incluído o abortamento, ao lado do infanticídio e do homicídio [12].
Sendo o aborto provocado a interrupção da vida, veda-o a Constituição. Vê-se que é impossível assegurar simultaneamente a inviolabilidade da vida humana e o aborto provocado.
Resulta claro, então, que sequer foi recepcionado pela Carta de 1988 o art. 128 do Código Penal. Em seus incisos I e II, excepcionara a punibilidade do delito de aborto em dois casos: risco de vida para a gestante e estupro [13]. Não é a lei, porém, que empresta licitude ético-moral a um ato; no máximo, pode supor-lhe a moralidade. O positivismo jurídico revela, aqui, um limite: a legalização de um comportamento não transforma sua natureza. Compare-se, a título de exemplo, a não punição do art. 128 do Código Penal com exclusão semelhante de pena que se previsse para o furto. Sabe-se que há um crescimento de furtos, roubos e violência no Brasil. Não adiantará legalizá-los, com o objetivo de que deixem de ser furto, roubo e agressão. E não será por uma legalização que desaparecerão, ou mesmo diminuirão esses atos.
Se a Lei Maior garante o direito à vida, pergunto como a lei que não defende a vida de quem sequer pode defender-se será considerada recebida (trata-se do fenômeno da recepção, porque a lei é anterior à Constituição, afastado, portanto, o exame à luz da inconstitucionalidade, neste ponto, pois que pressupõe a ulterioridade do diploma em relação à Lex Fundamentalis). Indago como se poderá buscar a ampliação de hipóteses de impunibilidade (que não significa retirar a tipicidade do ato, o qual continua sendo um crime, embora não punível), ou mesmo a exclusão do delito de aborto provocado.
A Constituição veio, sim, ao encontro do pensamento do povo que outorgou ao legislador constituinte o poder de elaborá-la. Garantiu a inviolabilidade da vida. Não se diga que seria necessário ter constado ali a expressão “desde a concepção”, ou equivalente, para assim se concluir, porquanto a vida não é um conceito jurídico. Repita-se, à saciedade, a ciência genética encontra a presença da vida humana já nesse momento.
Tal pensamento do povo brasileiro estava retratado no Código Civil de 1916, em cujo artigo 4º se previa: “A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Certo é que, conquanto transpareça inviável pôr a salvo direitos patrimoniais ou à honra do neo-concebido se não se lhe assegurar o direito à vida, esta interpretação prevalecia por muito tempo.
A Lei nº 10.406/02, o chamado Novo Código Civil, também preceituou, no art. 2º: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
Não é possível, à luz da Constituição Federal de 1988, sob cuja vigência exsurgiu, emprestar um significado reducionista à lei civil.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, no art. 2º, prescreve: “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até 12 (doze) anos de idade incompletos [...]”.
Estão assegurados todos os direitos do nascituro, a começar do primeiro, o direito à vida.
A pessoa humana é, em toda a intransitividade do verbo. É, existe, antes de ter, seja de ter um direito a herdar (art. 1798 [14], art. 1799 [15] e 1800, §3º [16] do CC); à filiação (art. 1596-7 [17] e 1609 [18] do CC, art. 26, parágrafo único [19] do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA); a alimentos (RT 650/220); à assistência pré-natal (art. 8º [20] do ECA); a ser contemplada por doação (art. 542 [21] do CC), a ser representada (art. 1630 [22] do CC, como decorrência do poder familiar), a receber curador (art. 1779 [23] e parágrafo único do CC).
Registro, outrossim, o Projeto de Lei n° 1.650/05, Estatuto do Nascituro, em trâmite no Congresso Nacional. Ali são elevadas as penas para o crime de aborto e garantidos diversos direitos ao nascituro, definido como “o ser humano concebido, mas ainda não nascido”, que goza do direito à vida, à integridade física, à honra, à imagem e todos os demais da personalidade. O Projeto estabelece como dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar-lhe, com absoluta prioridade, a expectativa de nascimento com vida, a saúde, a alimentação, a dignidade, a liberdade, colocando-o a salva de toda forma de “violência, crueldade e opressão”.
Por outro lado, convém lançar os olhos sobre a legislação internacional.
O Brasil subscreveu a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, depositando sua ratificação em 1992. Entrou para o ordenamento brasileiro expressamente pelo Decreto n° 678/92, tendo sido reconhecida, em 10.12.98, a jurisdição contenciosa da Corte Internacional. No art. 4º, está consignado o direito à vida desde a concepção: “[...] toda pessoa tem direito de que se respeite a sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção”.
No art. 5º, § 2º da Constituição Federal, foi explicitado que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. De acordo com o § 3º, “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Este parágrafo, obviamente, tem eficácia imediata, mas não retroativa, pois nada se legislou neste sentido, o que seria imperativo.
Forçoso é reconhecer que o direito à vida também deve ser defendido no Brasil, por conta de sua adesão à Convenção Internacional. E, tendo sido anterior à Emenda Constitucional n° 45/04, que acrescentou o parágrafo terceiro ao artigo 5º, dispensa o quorum qualificado ali previsto. É da categoria de norma constitucional fundamental.
Vale frisar, ainda, que, pelo § 4º do art. 60 da CF, não serão objeto de deliberação as propostas de emenda tendentes a abolir, dentre outros, “os direitos e garantias constitucionais” (inc. IV). Sem nova Constituinte, mostra-se inviável a alteração da proteção já concedida à vida da pessoa humana desde a concepção.
Ainda a respeito da referida Convenção, passando ao largo da discussão sobre qual o seu intérprete legal para o Brasil, se o nosso Poder Judiciário ou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), cuja competência é de caráter subsidiário, não se flagra divergência entre ambos.
A propósito, têm-se visto referências a uma interpretação da CIDH de que o direito ao aborto não violaria o art. 4º [24] da Convenção Americana de Direitos Humanos, amparadas aquelas na Resolução n° 23/81, oriunda do Caso 2141[25], contra os Estados Unidos da América, onde se examinou aborto autorizado pela Corte Suprema de Massachussets, Case Commonwealth vs. Dri Kenneth Edelin [26]. Omite-se, no entanto, a especificidade do caso. Com efeito, os EUA não se comprometeram com o direito à vida previsto na Convenção, pela simples razão de não a terem subscrito. Por idêntico motivo, não foi extraído relatório para iniciar processo na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Logo, tratando-se de o direito interno da nação americana prever o aborto, não poderia a CIDH ter extrapolado seu campo de atuação subsidiário, para concluir diferentemente.
No Brasil, em que o direito à vida é assegurado, sendo, ainda, país signatário do Pacto de São José e a ele obrigado pela ratificação de 1992, seria inviável conclusão de mesmo teor.
Mais recentemente, em 2005, propagou-se que o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas teria sufragado orientação favorável ao aborto, no caso KL contra o governo do Peru, difundindo-se exegese de que tal jurisprudência representaria instrumento para a defesa do direito das mulheres residentes nos países aderentes à Convenção. A priori, a jurisdição está vinculada ao princípio da territorialidade, de modo que aqui não haveria força em decisão do Comitê. Em segundo lugar, impor-se-ia, antes de espalhar essa idéia, até mesmo para que não se criassem expectativas infundadas, completar a notícia com a ressalva que acompanhava a matéria original: “Where abortion is legal it is governments’ duty to ensure that women have access to it.”[27] (Onde o aborto é legal, é obrigação do governo assegurar que as mulheres tenham acesso a ele, tradução livre).
Não se decidiu diversamente do Caso 2141, nem se alterou a interpretação internacional, sabido que o Peru já permitia o aborto.
No mesmo sentido, tem-se pautado a Convenção sobre os Direitos do Homem e da Biomedicina no Conselho da Europa, firmada em 1997, em Oviedo, quando deliberou, no artigo 1º [28]:
[...] as partes na presente convenção protegerão a dignidade e a identidade de todos os seres humanos e garantirão a todas as pessoas, sem discriminação, o respeito pela sua integridade e pelos seus direitos e liberdades fundamentais face às aplicações da biologia e da medicina [...].
E, em 1986, o Conselho da Europa, na Recomendação n° 1046, no considerando V, reconhecera que “desde o momento da fertilização do óvulo, a vida humana se desenvolve como um projeto contínuo, e que não é possível fazer uma distinção nítida durante as primeiras fases embrionais do seu desenvolvimento, e que a definição do status do embrião é, portanto, necessária”.
O considerando VII da Recomendação 1100 do mesmo Conselho roborou ser “correto determinar a tutela jurídica a ser assegurada ao embrião humano, embora se desenvolva em fases sucessivas indicadas com nomes diversos (zigoto, mórula, blástula, embrião pré-fixado, embrião, feto), [...] manifesta também uma diferenciação progressiva do seu organismo, mantendo continuamente a própria identidade genética” [29].
Não poderia deixar de traçar, sob o aspecto jurídico, um paralelo entre o direito do embrião, em qualquer fase de sua evolução, e o dito direito de sua mãe, de interromper-lhe a vida. Esse cotejo costuma ser feito sob a forma de slogans, segundo os quais ou o embrião é parte do corpo da mulher, ou é da mulher o pleno direito sobre o seu corpo (a mesma era a situação do escravo, direito que outorgava ao proprietário total direito sobre o servo. Quem ousaria, hoje, no mundo considerado civilizado, defender a escravidão?).
O progresso da ciência afastou totalmente a primeira assertiva. Não é uma opinião, mas um dado científico, que o neo concepto é um ser diverso e autônomo em relação à sua mãe, como se viu anteriormente. Não é a nidação ou implantação, por exemplo, que faz o embrião ser embrião, ser vida humana, ser pessoa, assim como não é o leite materno que faz o recém-nascido ser uma criança. Aliás, desde os primeiros dias, o embrião age, do seu modo, bloqueando a produção de determinados hormônios no organismo materno, enviando mensagens à hipófise e ao hipotálamo, aos ovários e ao próprio local de implantação do ovo. O organismo materno vê-se na contingência de reconhecer essa presença. Para haver essa relação, é preciso existir como indivíduo, pois é o ser que viabiliza a relação interpessoal. Se, numa audiência, o juiz, as partes e os advogados entram em recíproca relação é porque existem. Impraticável pensar que a existência de cada um dependa da relação processual.
O embrião se relaciona com a mãe, psíquica e fisicamente, porque existe. Recordem-se, também, as experiências armazenadas, de acolhida e rejeição, e as inúmeras sensações que o marcam até a idade adulta, como têm demonstrado a psiquiatria e a psicologia.
Assim, causas exteriores podem interromper o seu desenvolvimento, como o de qualquer ser humano, sem que se possa deduzir que o embrião seja incapaz de desenvolvimento autônomo, ou seja parte do corpo materno. Idênticas são as situações do neo nato que a mãe não aleitar, ou do adulto que se privar totalmente de alimento ou de água, por exemplo.
Discutível que seja o propalado direito da mulher sobre seu corpo (a vida de toda pessoa é um bem social), como o embrião não faz parte desse corpo, cai também esse slogan.
Muitos alegam que estaria imbricada, no fato da gestação, a dignidade da mulher, que sofreria uma restrição.
A fortiori, todo ser humano tem sua dignidade protegida, também o recém-concebido. Na dicção de Ingo Wolfgang Sarlet [30],
Da concepção jusnaturalista remanesce, sem dúvida, a constatação de que uma Constituição que, de forma direta ou indireta – consagra a idéia de dignidade da pessoa humana, justamente parte do pressuposto de que o homem, em virtude tão-somente de sua condição biológica humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados pelos seus semelhantes e pelo Estado.
Em outra obra [31], o autor giza
[...] a existência de consenso no sentido de que a consideração e o respeito pela pessoa como tal (inclusive antes mesmo do nascimento e independentemente de suas condições físicas ou mentais) constituem simultaneamente tarefa e limites intransponíveis para a ordem jurídica.
Sem sombra de dúvida, o respeito à dignidade também é um direito constitucional (art. 1º, inc. III [32] da CF).
Quando estão em rota de colisão dois direitos constitucionais, aplica-se o princípio da proporcionalidade, para estabelecer qual prevalecerá, a partir de um critério de ponderação dos interesses envolvidos.
Pelo princípio da proporcionalidade, entendido por Willis Santiago Guerra Filho, nos seus Ensaios de Teoria Constitucional, como “um mandamento de otimização do respeito máximo a todo direito fundamental, em situação de conflito com outro ou outros, na medida do jurídico e faticamente possível”, realiza-se a eleição do direito que prevalecerá, sob o que tem sido designado de princípio da concordância prática, expressão cunhada por K. Hesse [33], ou princípio de harmonização. Há, em última análise, uma hierarquização, como intitula Juarez Freitas, ou uma ponderação, como prefere Alexy.
J. J. Gomes Canotilho [34] assevera, a seu turno:
considera-se existir uma colisão autêntica de direitos fundamentais quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular. Aqui não estamos perante um cruzamento ou acumulação de direitos (como na concorrência de direitos), mas perante um ‘choque’, um autêntico conflito de direitos.
A função do princípio da proporcionalidade é ressaltada por Paulo Bonavides [35]:
Uma das aplicações mais proveitosas contidas potencialmente no princípio da proporcionalidade é aquela que o faz instrumento de interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos fundamentais e se busca daí solução conciliatória, para a qual o princípio é indubitavelmente apropriado. As cortes constitucionais européias, nomeadamente o Tribunal de Justiça da Comunidade Européia, já fizeram uso freqüente do princípio para diminuir ou eliminar a colisão de tais direitos.
O princípio, por seu conteúdo, se reporta a três subprincípios: da proporcionalidade em sentido estrito, ou máxima do sopesamento, da adequação e da exigibilidade, ou máxima do meio mais suave. Através deles, determina-se a correspondência entre o fim almejado por uma norma e o meio empregado, que deve juridicamente ser o melhor possível, dentro do faticamente possível, ou seja, o meio escolhido deve prestar-se para atingir o fim, mostrando-se adequado, não havendo outro, igualmente eficaz e menos danoso a direitos fundamentais.
Percorrendo-se os passos indicados por Suzana de Toledo Barros [36], constata-se, na espécie, que a conduta a ser regulada pela legislação infraconstitucional (direito da mulher ao aborto provocado) estaria contemplada no âmbito de proteção do direito fundamental à dignidade (segundo os seus defensores); a disciplina a ser estabelecida configura uma intervenção no âmbito de proteção do direito individual do embrião; não há autorização constitucional expressa para a restrição, identificando-se o conflito ou a colisão de direitos a justificar o estabelecimento de uma restrição, incumbindo analisar se a medida adotada é apta a atingir o fim proposto.
Ocorre que, embora direitos fundamentais o direito à vida e o direito à dignidade, cabe reconhecer precedência ao primeiro. Com o direito à vida só pode concorrer outro direito à vida (daí admitirem-se as hipóteses de legítima defesa e de estado de necessidade). O direito à dignidade, que, aliás, também o feto possui, tem por pressuposto sua vida. No caso da mãe, este direito – à vida – não está em jogo (salvo a hipótese de risco de vida). O aborto provocado não pode, portanto, ser considerado um direito superior. É menor na hierarquia dos direitos fundamentais. Estar-se-ia diante do exercício de uma liberdade absolutizada, radicalmente anti-solidária, contra a inclinação moderna do Direito, protetiva dos mais fracos e dos indefesos. Não fica preenchido o requisito da adequação. Não se justifica a restrição ao direito do embrião. Por óbvio é menos danoso ser mãe do que morrer. E não há possibilidade de exercício conjunto dos dois direitos em tela, de sorte que a redução impõe-se uni e não bilateral.
É o mesmo Ingo Sarlet que aduz, a propósito de “bens em rota conflitiva”[37]:
Na mesma linha – muito embora com implicações peculiares, - situa-se a hipótese de acordo com a qual a dignidade pessoal poderia ceder em face de valores sociais mais relevantes, designadamente quanto o intuito for o de salvaguardar a vida e a dignidade pessoal dos demais integrantes de determinada comunidade.
Demais disto, a ninguém pode ser outorgado o direito potestativo de eliminar um indivíduo humano.
Em uma única hipótese a Constituição previu a pena de morte, no art. 5º, inc. XLVII, a, em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, inc. XIX, excepcionalíssima limitação à inviolabilidade da vida. Não é possível, por via legal, nem por emenda constitucional, prescrever a pena de morte ao neo concepto, muito mais por crime de terceiro (no caso do estupro).
Talvez por isto tenha provocado frisson artigo do Conselheiro da OAB SP, Dr. Cícero Harada, “O projeto Matar e o Projeto Tamar: o Aborto”, que comparou o crime contra o meio ambiente previsto na Lei n° 9.605/93 – destruir ovo de tartaruga, e o Projeto de Lei nº 1.135/91, hoje sob a relatoria da Deputada Jandira Feghali, do PC do B/RJ, onde se pretende legalizar o aborto, sem pejo da inconstitucionalidade do seu objeto.
Insta recordar, ainda, a vedação à tortura, também assumida pelo legislador constituinte, no art. 5º, inc. XLIII, em que a dignidade da pessoa humana é rebaixada ao nível de objeto, coisificada, desconsiderada como sujeito de direitos. A propósito, menciona Ingo Sarlet [38]:
Não restam dúvidas de que a dignidade da pessoa humana engloba necessariamente respeito e proteção da integridade física e emocional (psíquica) em geral da pessoa, do que decorrem, por exemplo, a proibição da pena de morte, da tortura e da aplicação de penas corporais e até mesmo a utilização da pessoa para experiências científicas.
Tampouco há dúvidas sobre o sofrimento fetal, físico e psíquico, durante o aborto.
Enfim, em caso de gravidez sucessiva a estupro, ferir-se-ia o art. 5º, inc. XLIV da Carta da República, segundo o qual “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”, já que o embrião seria levado à morte por crime de seu genitor.
Evidencia-se que, se lei elaborada pelo legislador infraconstitucional mostrar-se-ia inconstitucional, como não recepcionada lei anterior, muito mais viciada mera portaria, ato administrativo da autoridade executiva, como a Portaria nº 1.508, de 1º de setembro de 2005, publicada no Diário Oficial da União, nº 170, em 02/09/05, na seção 1, páginas 124-125, dispondo sobre o “Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS”.
Como assinalei ao início, este trabalho teve por escopo realçar o que a legislação brasileira dispõe sobre o aborto provocado. Por isto, não ingressei na seara das diversas repercussões possíveis de uma gravidez para a gestante, a família ou a sociedade. Permito-me apenas consignar que a obrigação ética da sociedade e dos indivíduos prevê o empenho em prevenir as situações de risco ou de deterioração da saúde das mulheres grávidas por meios lícitos, garantindo-lhes assistência médica, psicológica e hospitalar, além de sócio-econômica, com políticas de saúde pela vida, partindo do princípio fundamental do valor de cada pessoa humana – gestante e bebê -, transcendente a qualquer outro bem temporal ou a qualquer consideração econômica ou social. Uma sociedade se distingue por sua capacidade de ajudar os fracos e os fragilizados e não por sua arrogância em autorizar a morte.
Em rápidas pinceladas, à luz do direito brasileiro e do internacional sobre a inviolabilidade da vida desde a concepção e o aborto provocado, insta concluir:
1. O direito haure da ciência o conceito de vida humana e esta, no atual estágio de desenvolvimento, reconhece a presença da vida humana desde a concepção.
2. A Constituição Federal assegura a proteção à vida, sem qualquer restrição. Veda a tortura e a penalização de pessoa diversa do autor do delito.
3. A legislação infraconstitucional divergente, anterior à Carta Política de 1988, não foi recepcionada.
4. A legislação infraconstitucional posterior, assim como os atos administrativos relacionados, que deixem de assegurar o direito à vida plenamente, equivale a dizer, desde a concepção, estarão viciados de inconstitucionalidade.
5. O Brasil ratificou a Convenção Interamericana de Direitos Humanos anteriormente à Emenda Constitucional n° 45/04, o que colore o direito à vida desde a concepção com a natureza de norma constitucional, por força do § 2º do art. 5º da CF.
6. Essa situação só poderá ser alterada mediante nova Assembléia Constituinte, dada a cláusula de imodificabilidade prevista no art. 60, § 4º, inc. IV.
7. Na solução de casos concretos, onde ocorrer o conflito entre o interesse da gestante e o do feto, não é possível aplicar o princípio da proporcionalidade, por falta de adequação e pelo relevo do dano que seria produzido ao último, se atendido o direito da primeira.
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