Reflexo dos tempos
10.04.07 |
Por Paulo Antonio Pires Borges,
advogado (OAB/Rs nº 39.588)
Na noite de terça-feira fui assaltado. Eram pouco mais de oito horas. Rua movimentada e insuspeita de bairro nobre da Capital. Levaram-me o carro, a carteira e o celular. Há alguns anos já havia sido vítima de furto de veículo. Só que desta vez foi diferente. Foi assalto à mão armada, à minha óbvia presença.
Pela primeira vez na vida senti-me diante da possibilidade real de meu fim, por uma bala. Logo agora, que possuo uma filha com menos de uma semana de vida e passo a refletir sobre as condições desta terra que a recebe. Logo agora, entrei definitivamente para as estatísticas da violência próxima, real, aterrorizante, que a cada dia aperta mais o cerco. Não há mais lugar seguro.
Apavorou-me o fato. Analisando minha conduta imediatamente posterior, hoje apavora-me mais ainda a normalidade com a qual encarei o que poderia ter sido o último dos meus momentos. Dormi bem, acordei bem e no outro dia fui trabalhar normalmente.
Tratei com naturalidade o que deveria ser encarado como a mais excepcional das exceções. É o famoso reflexo dos tempos a atingir a consciência. Muito grave distorção de valores percebi assolar o pensamento brasileiro neste tumultuado tempo sem lei, sem ordem e sem progresso.
No exercício mental de procurar culpados percebo que talvez eu mesmo seja um deles, visto que até agora não me envolvi diretamente com política. Já não sei mais se apenas fazer bem a minha parte, trabalhando e votando bem, é realmente colaborar.
Em um país onde ser honesto é motivo para receber elogios tudo, absolutamente tudo, parece-me estar errado.
Descubro, assim, que o problema é fundamental. Os indivíduos que me assaltaram eram profissionais. Educados, tranqüilos e discretos. Sabiam o que estavam fazendo. Haviam cursado a academia do crime e estavam comprometidos com seu objetivo. Por outro lado, amadoras e descomprometidas percebo serem as instituições responsáveis pela prevenção e combate às ações criminosas. Desaparelhadas, sucateadas, corruptas ou amedrontadas.
Não havia um policial na rua, provavelmente nem no bairro. O carro de polícia, prometido por telefone, até agora não chegou. A impressora da delegacia onde fui registrar a ocorrência ainda era matricial.
Esse paradoxo entre o crime poderoso e a fragilidade da segurança pública nos relegará em pouquíssimo tempo à permanente prisão domiciliar, condenados pelo delito da falta de vontade dos homens, por nós eleitos, de construir um Brasil realmente melhor. Hoje estamos impedidos de gozar do que o nosso trabalho honesto nos proporciona. Se já não tínhamos direito à saúde e à educação, agora, definitivamente, não temos mais à propriedade e à liberdade. Vivemos em constante sensação de insegurança, de desespero, diante de um cenário deveras imutável.
Travamos diariamente batalha já perdida. Sinceramente, não sei o que fazer. Impotente, paralisado, amarrado gorgiamente, rogo em prece as palavras do cantor Oswaldo Montenegro, no poema "Metade", quando parece descrever com precisão meus sentimentos: "que essa vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço".
Sim, porque eu mereço! Pago meus impostos, trabalho honestamente. Tentei levar minha ´vida normal´, enganando-me na confortável inocência de acreditar que o perigo real estava longe. Sabia que não, mas mesmo assim fingia crer, pois no Brasil varonil não existe terrorismo, não há guerra, nem terremotos. E não pretendia render-me ao desassossego. Até que o objeto de meu falacioso desprezo atingiu-me frontal, direta e incontestavelmente. Agora, para mim chega! A partir de hoje, em nome do mais basal dos instintos mudo minha rotina.
Ficarei em casa depois do trabalho. Aí, iluminado pela luz crepitante do televisor, minha janela para o real, assistindo às notícias que vêm do Oriente Médio, realizarei, definitivamente, que há muito tempo perdi a fé. Estamos sós. Instalei novo ferrolho em minha porta. Agora, só espero que eles não me encontrem por aqui.
(*) E.mail: [email protected]