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Publicado em 28.05.15

Para Defensoria Pública do RS, delegado de polícia é hipossuficiente!


Leio que no Rio Grande do Sul uma delegada de polícia é defendida por seis defensores públicos, que, segundo diz o Ministério Público — que está processando os referidos defensores por improbidade administrativa — foram ao encontro da policial para lhe oferecer os serviços da instituição. A própria delegada confirmou que foi contatada por um defensor público, que afirmou que “a defensoria entendia” que a delegada estava sendo vítima de perseguição pelo MP. Isso está nos autos. E isso não é um detalhe menor: a coluna mete a mão num vespeiro e qualquer tropeço na narrativa pode dar em confusão.

Mas, como tudo começou? A polêmica começou em agosto de 2012, quando a delegada Ana Luíza Caruso se negou a lavrar o flagrante suspeitos de tráfico detidos durante uma operação do MP com o apoio da Brigada Militar. Seu argumento: MP não pode investigar. Simples assim. E é ela quem decidiu isso. E, é claro, foi processada por isso. E foi defendida por seis defensores públicos. Já tinha advogado constituído, abandonou-o, expressamente revogou o mandato antes concedido (está lá no processo) e preferiu os seis defensores públicos. É o relatório!

Ab initio, a delegada e os defensores não poderiam ignorar a lei e o que se diz sobre esta e a própria Constituição. Com efeito, no RS todos sabemos: Não é que a Defensoria ela seja impedida de defender servidores públicos; ela está proibida de defender pessoas que não necessitem da sua assistência, por disporem de recursos suficientes; aí incluídos, caso a caso, os servidores públicos — isso fica mais claro ao longo da coluna, mas é importante não dar margem a mal entendidos. E não sou eu quem diz. É o Supremo Tribunal Federal. Leiamos:

ADI 3022-RS. Art. 45 da Constituição do RS. Alínea “a” do anexo II da LC 9.230/91-RS. Atribuição, à defensoria pública, da defesa de servidores públicos estaduais processados civil ou criminalmente em razão de ato praticado no exercício regular de suas funções. Ofensa ao art. 134 da CF. (...) 2. Declaração da inconstitucionalidade da expressão "bem como assistir, judicialmente, aos servidores estaduais processados por ato praticado em razão do exercício de suas atribuições funcionais", contida na LC 9.230.(...) 3. (...) 4. Ação julgada parcialmente procedente.

Embora o STF já tenha dito tudo isso, a Defensoria insiste que o conceito de hipossuficiência não é de insuficiência de recursos e, sim, “organizacional”. Mas, o que seria isto, a “hipossuficiência organizacional”? Ao que consta, a ideia seria (é) estender a legitimidade para a defesa de grupos que seriam naturalmente desorganizados (usuários de planos de saúde, consumidores etc.). Ora, essa concepção pode ser criticada por mais de uma razão (Ada Grinover também critica esse conceito). Mas, dando de barato e trabalhando com ela, o fato é que ela deve ser harmonizada ao que diz a CF (e, na leitura do STF, a CF — casualmente a “lei maior do país” — fala em “insuficiência de recursos” vou repetir o que diz a CF: “aos-que-comprovarem-insuficiência-de-recursos”. Quem tem dúvida acerca dos limites semânticos e do significado desse enunciado? Binguíssimo. No mais, o dado é que um conceito jurídico indeterminado (conceito ônibus) como esse, vago, não pode ser utilizado como “escudo”, como álibi para que a DPE escolha seus assistidos. Para ser bem claro: Ou bem o sujeito tem o DIREITO de ser atendido pela DPE (e a instituição, em contrapartida, tem o dever de assistência), ou bem não o tem. É a coisa do having a right e do have a duty to. Não há discricionariedade aqui. Não se pode “escolher” o assistido (como se faz no RJ, em que a hipossuficiência fica ao alvedrio de cada defensor). A atuação é casuísta e não universalizável por definição. Todos nós, nesse conceito “elástico”, compomos algum grupo “naturalmente” desorganizado. Outro lance é: que tipo de desorganização expõe o indivíduo à violação de um direito humano?

Para ser bem simples: A Defensoria pode defender qualquer pobre na República. Sendo ele servidor ou não, desde que comprove (sim, comprove) a insuficiência de recursos. O que um (ou seis) defensor(es) não pode(m) é defender quem não é hipossuficiente.

Chamemos o Chapolin Colorado
Em um país carente de recursos, como é possível que a Defensoria se dê ao luxo de deslocar recursos e energias representados por seis competentes agentes para a defesa de alguém que não é hipossuficiente (vejam o que escrevi acima: não foi bem isto o que ocorreu?)? Ou um delegado de polícia é hipossuficiente? Então um prefeito também é. E um deputado? E um promotor? E um juiz? Estão de brincadeira? É a sério isso?

Seria implicância minha, como diriam alguns defensores? O leitor e o contribuinte de Pindorama que decidam...! Ah: posso criar um paradoxo? Se a hipossuficiência não é de recursos (pobreza), e, sim, “organizacional” (sabe-se lá o que este conceito “ônibus” quer dizer), por que os próprios seis defensores — ora noticiados na ação de improbidade — não são defendidos por um ou mais defensores públicos? Pergunta que não quer (e não pode) calar: Qual é o critério para dizer que defensor público não é hipossuficiente e delegado é? Seria o mesmo critério para dizer que o “cara” da "lava jato", diretor de grande empresa, é hipossuficiente? É por que é? Porque sim?

E, permito-me insistir neste ponto: um país em que delegado de polícia é considerado hipossuficiente... sai prá lá. Chamemos o Chapolin Colorado para nos defender. O que resta para os demais brasileiros? Duvido que a maior parte dos defensores do país concorde com o que foi feito na terrae gauche. Duvido também que a maior parte dos defensores concorde com essa coisa chamada de “defensoria como poder popular” (sic)... que está sendo defendido por aí. Se isso vingar, tenho medo que logo surjam “milícias jurídicas” atuando Pindorama a fora. Serão os para-legais jurídicos, aqueles-que-ficam-de-fora-do-botim-estatal. O que me dizem?

Pindorama não vai nada bem. Quando se trata da coisa pública, somos generosos... com o dinheiro da malta. Por isso, os liberais e conservadores de Pindorama estão até “aqui” com a máquina pública e os seus gastos desmesurados. Um dia isso tudo explode. E tenho de dar razão a eles. Por que tudo que é do poder público é tratado de forma tão fácil(itada)? Um cidadão comum jamais teria mais de um defensor (público). Mas uma policial tem... seis. Uau! Calculemos: na medida em que cada defensor recebe o salário de um juiz, são mais de R$ 100 mil por mês dedicados à defesa da doutora delegada (idem ao que adverti acima sobre hipossuficiência). Baita privilégio, não? Quem não quer isso? Fechemos os escritórios de advocacia. Todos queremos ser atendidos pela Defensoria. Somos todos hipossuficientes organizacionais de um modo ou de outro (nous sommes tous hyposufficient organisationnelle, algo como Tout vas três bien, madame Marquise, dizia a malta enquanto o castelo da Marquesa pegava fogo). E com prazos em dobro! Telefonei para um amigo meu na Alemanha e ele disse.... Bem, é impublicável. Porque não acreditava. Nem o mais rico réu da Lava Jato paga mais de R$ 100 mil por mês ao seu causídico.

É isso. Curto e grosso. Tudo o mais o que penso sobre o papel (relevante) da Defensoria no sentido de que ela deve obedecer a Constituição e se restringir à representação de hipossuficientes que comprovem essa condição já o fiz em outras Colunas e textos (mesmo que a DP possa fazer ação civil pública, isso não derrogou o dispositivo da CF que exige a comprovação da hipossuficiência — como fazer isso no bojo de uma ACP? Não sei. O STF que resolva; foi ele que pariu Mateus; o tempo é que dirá o “rolo” que isso ainda causará – parece que tudo em Pindorama está virando estatal; seria o sinuelo do socialismo?). Não vou me repetir aqui.

É importante registrar que, juntamente com o MP, a Ordem dos Advogados do Brasil do Rio Grande do Sul expediu recomendação para que a DP limite sua atuação ao atendimento dos “necessitados e que comprovarem insuficiência de recursos materiais”. Ainda, habilitou-se na ACP como “amicus curiae” em defesa das prerrogativas dos advogados, protegendo “o seu sustento e de suas famílias”. Correta a OAB-RS pela coragem de optar pela legalidade constitucional, mesmo que isso possa parecer, nestes tempos bicudos, antipático.

Vamos ver como a justiça gaúcha tratará desse assunto (sim, sei que em uma decisão, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul disse que hipossuficiente é “organizacional” — mas essa decisão é inconstitucional, porque a CF não foi alterada nem revogada — ainda — no mínimo, esse conceito interpretativo deve levar em conta toda a malha conceitual e normativa que o antecede, e que justifica e institucionaliza a Defensoria enquanto agência encarregada da democratização do acesso à justiça, dando voz e vez a quem não a tinha, por... ausência de recursos!). Espero que desta vez o TJ-RS leia corretamente a Constituição e as leis. Pindorama não pode pensar que (já) vivemos em um sistema socialista, em que tudo sai das costas da combalida viúva. Em Pindorama, o esquema tático é “retranca”: preferimos investir mais na defesa que no ataque...se entendem o que quero dizer.

O absurdo chamado pelo próprio nome
Lembram que semana passada falei sobre os acertos “por acaso”? Tratei de Dworkin e vimos, de novo, que questões jurídicas não são questões morais ou teleológicas. E que opiniões coloquiais, o senso comum etc, por vezes coincidem (como um relógio quebrado) com a verdade. É o caso. É uma afronta não ao senso comum apenas, mas ao bom senso mesmo, que todos nós paguemos pela defesa individual de uma Delegada de Polícia. Entendam: não estou dizendo que o Ministério Público tem razão integral, e que se está diante de um ato de improbidade administrativa (coisa que decorreria do desvio de finalidade da atuação da Defensoria). Deixo esse juízo para ser feito por quem de direito, nos autos, em contraditório, na forma da lei e da CF. Meu argumento é: juridicamente, é um absurdo (e o absurdo deve ser chamado pelo nome) o stretch interpretativo feito para abarcar uma situação como essa num caso de hipossuficiência. Politicamente, também! Ou seja, como justificar publicamente, em meio ao amplo debate sobre os limites do Estado Social, sobre o custo dos direitos e tal (ou não estamos todos de acordo que mesmo o direito a saúde, para ficar apenas neste, deve ter algum limite, já que não podemos dar assistência integral a toda à comunidade?), o emprego de recursos públicos para amparar uma situação de necessidade, no mínimo, questionável?

Há alguns dias escrevi aqui sobre a necessidade de termos mais Creonte e menos Antígona em Pindorama. Historicamente interpretou-se que o interesse particular e privado de Antígona pudesse se contrapor ao direito de todos, o direito da polis. Antígona parece que era adepta de certo esquerdismo, uma doença infantil denunciada por Lenin nos anos 20 do século XX. Equivoco. Quem estava certo era Creonte e neste ponto concordo com Sergio Buarque de Holanda, que mostra como a nossa opção por Antigona foi um tiro no pé. Um desastre. Basta ver como a Câmara dos Deputados reservou, no meio do “ajuste fiscal”, nada menos que R$ 1 bi para fazer mais um prédio. Pobre polis pindoramense. O patrimonialismo de Pindorama está ancorado no direito fofinho de Antigona (hoje temos direito a ter três pais, duas ou três mães, tudo em nome de afetividade e outros quetais que não possuem normatividade; amante ganha a metade da herança; faz-se usucapião de terras públicas; políticos dão declaração sentido pena do jovem que esfaqueou o médico no RJ; concede-se três meses a mais de auxilio maternidade para quem tem trigêmeos; solta-se 21 presos com base em argumentos morais-políticos; juiz de direito, com curso de doutorado, diz que, se tiver que fundamentar de acordo com o artigo 489 do novo CPC, vai se mudar para o Zimbawe, etc). Pois é. Antígona venceu! E nós perdemos. Aqui, de minha trincheira, digo: O que precisamos é a firmeza no trato da coisa pública de Creonte. Nossa opção por Antígona ainda vai nos destruir. Aliás, se é que já não nos destruiu.

Uma metáfora final, para entender as “razões de Pindorama”.
Um amigo mandou-me um cálculo que fez. Comprou um saquinho de orégano de 3g por R$ 1,99. Barato, não? Lego engano. O quilo sai por incríveis R$ 633,33. Todos nos enganam fazendo essas embalagens pequenas e fazendo parecer que é barato e bom. E vão comendo pelas beiradas... Esgarçando aos poucos. Tinta para impressora parece barato... Vendida em pequeníssimas porções. Fosse por quilo, duvido que alguém compraria. Custa R$ 13,5 mil. Bom, a champagne Veuve Clicquot custa só R$ 1,29 por mililitro... Quem entendeu a metáfora e me explicá-la amiúde, mande email para [email protected]. Os que derem as três melhores respostas, ganharão livros — mandem junto o endereço postal com CEP para, se vencedores, receberem via correio.

Fonte: Conjur