OAB sedia audiência pública para debater crime de desacato e a ADPF 496


27.02.18 | Advocacia

Em audiência pública realizada pela OAB Nacional nesta segunda-feira (26), diversas entidades debateram a questão do crime de desacato, questionado pela Ordem em ação no Supremo Tribunal Federal. Os participantes foram unânimes em apontar a incongruência deste tipo penal no contexto democrático e apresentaram os problemas relacionados a ele. A OAB é autora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 496, que questiona a legalidade do art. 331 do Código Penal.

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Na abertura dos trabalhos, o presidente nacional da OAB, Claudio Lamachia, afirmou que o crime de desacato, na forma prevista pelo Código Penal, não se coaduna com a Constituição. “Não pode ser admitida uma sanção com tipo aberto, como é o desacato. Nesta audiência debateremos conceitos como liberdade de expressão e princípios de legalidade e igualdade frente a dispositivo legal que precisa ser revisto”, adiantou Lamachia.

Para o presidente da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas e Valorização da Advocacia, Jarbas Vasconcelos, o país vai aos poucos, mas com determinação, sendo passado a limpo e atualizado com a contemporaneidade do mundo. Segundo o advogado, o crime de desacato se insere em contexto histórico em que o Estado não admite questionamentos. “A OAB entra em luta histórica contra tipo penal que desqualifica o cidadão, principalmente o mais pobre”, afirmou, trazendo números de levantamento feito pelas Seccionais, que identificou até oito mil crimes de desacato processas em alguns estados.

O procurador nacional de defesa das prerrogativas, Charles Dias, ressaltou o compromisso da OAB, “sempre altiva ao lado dos direitos fundamentais”, de não admitir crimes com tipo aberto. “Não podemos aceitar que, em pleno século 21, tenhamos que o mero entender de quem está atrás do balcão de um órgão público pode considerar que houve crime”, alertou. “Ao final desta audiência teremos material muito útil para a luta”, completou.

Ao fim da audiência pública “A ADPF 406 e o Crime de Desacato”, as entidades participantes afirmaram que vão se credenciar como amicus curiae no STF para o debate da questão. São elas: Instituto dos Advogados Brasileiros, Defensoria Pública da União e Associação Brasileira de Advogados Criminalistas. A ONG Artigo 19, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e Defensorias Públicas de diversos Estados já haviam pedido ingresso.

EXPOSIÇÕES

O presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB e membro honorário vitalício, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, apresentou as bases legais para a ação da entidade frente ao STF. Segundo Coêlho, como há controvérsias jurídicas sobre a validade do desacato, mesmo dentro do STJ, há o requisito para a ADPF. Também lembrou que a invalidação do art. 331 não acabará com outros tipos legais como injúria, calúnia e difamação.

Ao elencar as inconstitucionalidades do referido artigo do Código Penal, Coêlho disse que ele ofende a liberdade de expressão e o direito de crítica. “O cidadão deve ter a última palavra sobre o que criticar e contestar, não é o Estado que deve dizer”, explicou. Também são feridos os princípios da igualdade e da legalidade. “Essa é uma ação importante na resistência contra o autoritarismo”, asseverou.

A segunda exposição ficou a cargo de Carlos Weiss, da Defensoria Pública de São Paulo, pioneira em levar o debate para a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ao elogiar a iniciativa da OAB, afirmou que a entidade é baluarte na defesa do estado de direito. “Desacato atenta contra a democracia. Esperamos que, com a ADPF, possamos reverter tendência autoritária que vemos surgir no Brasil”, afirmou. Citando Roberto DaMatta, que escreveu sobre o desacato, Weiss disse que a ofensa deixa de ser à pessoa do servidor e passa a ser ao Estado todo, mas, na verdade, é o servidor que sequestra o Estado para si próprio, passando de servidor à autoridade. “Quebra-se equilíbrio republicano de que todos somos iguais perante a lei”, lamentou.

Camila Marques, advogada da ONG Artigo 19, que trata da promoção e defesa da liberdade de expressão, apresentou uma série de razões para descriminalização do desacato. Segundo Marques, esse é um tipo penal extremamente utilizado, em diversos contextos e com um alvo específico: a população vulnerável social e economicamente. “É uma intimidação para a população”, resumiu. A advogada exemplificou, então, diversos cenários em que é utilizado: criminalização de protestos sociais; uso em favelas e periferias; desacato militar; manifestações artísticas; e críticas pela internet. “É importante descriminalizar porque o desacato é contrário a padrões internacionais, além de ter o efeito nefasto da autocensura”, diz, lembrando que a luta pode passar também pelo Congresso.

A procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, questionou por que um dispositivo tão obviamente inconstitucional segue vigente no país. Segundo ela, é necessário olhar para nosso passado, marcado por violências e silenciamento, que criou mecanismo que protegem certos cidadãos de outros. Com a Constituição de 1988, a situação muda, com a periferia tendo voz. “O crime de desacato é especialmente perverso para grupos que iniciam suas lutas, porque é contra eles que se dirige para condenar ao silêncio. Tem efeito ainda cruel no princípio central do pluralismo”, explicou.

CORTE INTERAMERICANA

O juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos Roberto Caldas abordou o entendimento da corte, lembrando que o Brasil é signatário do Pacto de San José e, por isso, tem que acatar as decisões tomadas no órgão. “Além da liberdade de expressão, há o princípio da igualdade. Temos que adequar o Código Penal, ou reinterpreta-lo, para não poder se considerar não iguais cidadãos e servidores”, afirmou. “O Estado está para servir, então seus agentes também.”

Técio Lins e Silva, presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, afirmou que o crime de desacato diz respeito diretamente à advocacia, que sofre com ele, e que a grande maioria dos processos embute um abuso de autoridade. Lins e Silva lembrou que a OAB havia aprovado em seu Estatuto da Advocacia, de 1994, o fim do desacato por parte de advogados, mas que o STF, em uma ADI, retirou o dispositivo. “Já vai tarde o desacato”, afirmou.

Carlos Eduardo Barbosa Paz, defensor público-geral da Federal, narrou ser do cotidiano de advogados e defensores situações que podem levar a desacato e que as posturas oscilantes de tribunais acerca do tema podem levar STF a debate-lo. Também abordou outros tipos penais similares, como a denunciação caluniosa e o desacato militar, em que civis podem responder ao crime na Justiça Militar. “Precisamos entender que a horizontalidade existe sim, por mais que tratemos o Estado com reverência. Como parte de instituições públicas, tem obrigação de atender bem”, disse.

Por fim, o presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, Everaldo Patriota, analisou as discussões desenvolvidas na audiência pública, afirmando que terão grande impacto civilizatório nas relações sociais brasileiras. Ao dizer que o desacato é cotidiano na profissão de advogado, “o que dizer de milhões de cidadãos excluídos, pretos e pobres, que lutam pela afirmação de seus direitos?”, questionou. “Queremos um avanço civilizatório, uma cidadania plena. É em nome da dignidade que a OAB faz esforço de hoje em nome de toda a sociedade brasileira. Não podemos continuar sendo sociedade castas. Utopia civilizatória é a razão de existência de todos os cidadãos”, finalizou.

Fonte: CFOAB